Corre pelas redes sociais uma crítica a um texto que o Prof. Brasílio Sallum Junior, do Dep. de Sociologia da USP, publicou no Estadão no dia 22/08/2019. Texto este completamente equivocado, de fato, em minha opinião – assim como desde há muitos anos vêm sendo as posições políticas do Brasílio, um ótimo professor, intelectual e dono de exímio caráter, diga-se de passagem. No entanto, embora compartilhe do conteúdo das críticas ao texto, não acho que devamos personalizar certas questões. Sobretudo porque para muito além das bobagens que o Brasílio ou o X ou o Y dizem diuturnamente na imprensa em geral, existe algo estrutural e impessoal muito mais daninho que habita quase todas as posições do espectro político brasileiro, desde a direita da direita, da qual o Brasílio definitivamente não faz parte, até a esquerda da esquerda, da qual um monte de pretensos salvadores da pátria fazem parte. A grande questão começou quando o movimento de independência das ciências sociais brasileiras, em curso desde pelo menos a década de 1930, foi abortado pelo golpe de 1964. Estou falando do expurgo da universidade e da interrupção do trabalho desenvolvido por intelectuais do calibre de Florestan Fernandes, Guerreiro Ramos, Sergio Buarque de Hollanda etc. Ou seja, daqueles que logravam criar, cada um dentro de sua particularidade, um modo específico e profundamente nacional de enxergar e conhecer os nossos problemas sociais. Instrumentais teóricos, analíticos e conceituais esmerados à luz de apropriações inventivas e críticas dos autores clássicos europeus e norte-americanos davam vida à teoria do subdesenvolvimento, à do capitalismo periférico, à teoria da dependência, dentre outras contribuições nativas fundamentais cunhadas nesse momento pré-1964.
Ora, após esse instante de breve glória vimos o desmonte de uma ciência de alto nível sendo posto em marcha pelos militares. Novas instituições foram então fomentadas em torno dos Programas de Pós-Graduação e da tentativa de expansão do ensino superior. Não por acaso é dessa época em que datam as primeiras instituições financiadas pela Fundação Ford, como o IUPERJ, o Departamento de Ciência Política da UFMG, o CEBRAP, o PPGAS do Museu Nacional etc. Dentro de suas diferenças, que não eram poucas, podia ser visto um princípio de unidade, que depois se alastrará como um rastilho de pólvora em meio a todos os centros de estudos de ciências sociais: uma visão normativa tácita que pressupunha a dissociação entre a política e o sistema econômico. Em outras palavras, teorias e conceitos que buscassem articular a realidade local, institucional, racial, educacional, cultural etc. ao concerto do capitalismo mundial caíam em desuso; a “democracia” em abstrato era a meca, um fim quase natural a que deveríamos aspirar, e o regime de exceção contribuía e muito para que qualquer coisa figurasse melhor do que aquilo que existia. Qualquer coisa, frise-se novamente, financiada econômica e conceitualmente pela Fundação Ford. E como diria um dos célebres conterrâneos de Henry Ford, não existe jantar gratuito no capitalismo…
Tudo aquilo de melhor que havia sido feito em termos de uma ciência genuinamente nacional, sobretudo por meio dos tão distintos, mas irmanados nesse aspecto Escola Uspiana de Sociologia e ISEB, deveria ser deixado de lado. Uma doxa desde então foi se estabelecendo paulatinamente nas ciências sociais: cabiam a busca sôfrega por instituições políticas democráticas burguesas e pensar como essa democracia poderia vir a fincar terreno entre nós em uma eventual pós-ditadura. Mas de qual democracia estamos falando? Aquela das instituições… a das instituições que estão funcionando. Que sempre, figurativamente, para as elites e para a mídia estão funcionando. Para quem ou para que não importa; importa que estejam funcionando. O conceito outrora tão caro e organicamente articulado às ciências sociais brasileiras teve de ser apagado das novas ciências sociais fordistas-brasileiras, ou ao menos deixado de lado para o deleite de extravagantes marxistas: estou falando aqui do conceito de capitalismo. A luta contra a ditadura, ditadura esta financiada pelos EUA, encontrava (nem tão) contraditoriamente a mão dos mesmos EUA a nos guiar para fora dela. O que faríamos então com a tal liberdade? Atrelaríamos nosso pensamento ao cabresto teórico e conceitual pelo qual o fordismo logrou nos moldar, azeitando as nossas melhores inteligências nacionais com bolsas e doutorados em território yankee.
Logo mais à frente a Anpocs, a Anpuh, a Anpof, quase todas as instituições e revistas científicas feministas e de estudos de gênero, bem como quase todo o movimento negro foram dócil e fartamente bancados pela mesma Fundação Ford. Não seria exagero dizer que a Ford praticamente recriou, à imagem e semelhança que bem lhes aprouvesse, a ciência social de ponta nacional. Com contrapartidas, claro: a cegueira alastrada em imaginar que se pode atingir um patamar de civilização no capitalismo periférico apenas por meio de instituições políticas democráticas e seus aperfeiçoamentos. Eis a constante, quase uma lei natural a guiar os mantras de nossos cientistas políticos, antropólogos e sociólogos desde então. Da esquerda à direita, de norte a sul, dos mais diversos “lugares de falas” ou de posições minoritárias “empoderadas” víamos o léxico fordista, a problemática nacional norte-americana impondo-se já de saída em nossos raciocínios. As soluções estavam dadas de antemão: sempre cabe buscar a inclusão nos moldes da democracia burguesa. Aliás, “lugar de fala”, “empoderamento”, “minorities” são as formas pelas quais quase todos os candidatos a mestres em ciências sociais são obrigados a pensar o mundo em nossos PPGs de hoje, haja vista o pensamento único recoberto pelos lemas do catecismo científico norte-americano ser a porta de entrada a quem ainda queira ser chamado de razoável e levado a sério.
Muito mais deletério do que o Brasílio dizer bobagens liberais que ele e vários outros há muito tempo dizem é ver uma esquerda bem-intencionada, engolfada exatamente nas mesmas malhas ideológicas do polo pretensamente oposto. O arroto de superioridade não torna ninguém melhor do que o outro quando, na verdade, ambos os lados não reúnem condições de entender que a barbárie não é uma excrescência do capitalismo nem uma “falha”, uma “doença” (Eliane Brum) da democracia burguesa de um país como o Brasil – pelo contrário, ela é a sua mais pura encarnação e normalidade. Esquecer que nos posicionamos em um capitalismo periférico, que o capitalismo ainda existe, que aqui ele toma forma própria, que é ele quem articula todo o nosso universo simbólico e material e que o imperialismo nunca tirou de nós a sua garra é o preço a se pagar para quem se ludibriou achando que bastavam instituições democráticas e uma constituição cidadã embaixo do braço para nunca mais termos que encarar a nossa verdade. Se há algo de bom no que está acontecendo é que Bolsonaro e sua gangue nos fizeram despertar de vários ledos enganos. O que não sabemos é o que, nem como, nem se dá para fazer algo antes que eles arrasem tudo o que restava do Brasil: até mesmo as autoilusões de seus intelectuais.